Afeto, amor, doçura e aventura nas relações entre avós e netos


Para os avós, netos são fonte de renovação e até da capacidade de amar (Foto: Freepik/Banco de Imagens)
Para abrir a nossa série Laços de Familia, conversamos com a escritora Fátima Brasileiro sobre o seu livro Memórias Afetivas. O primeiro laço, seu próprio nome, Maria. Enlaçado pelos bicos que sua avó fazia, o livro traz palavras inspiradas pelas histórias que a avó contava, os ditados com os quais conduzia todos à sua volta e crônicas nela inspiradas.
Chegara a neta aos seus 60 anos quando a perda da mãe a fez reunir os guardados e transformá-los, segundo ela, em sentimento puro, não em obra literária. Muitos anos morando com a avó, fez um livro todo no afeto, entremeado pelos bilros, estes representando o manuseio da avó ao longo da vida.

Ao revisitar o passado, trouxe a história e a oficina de escrita com as técnicas, sistematizou e deu sentido aos seus laços de família, permitindo que se tornassem de todos. Os que viveram na região do Sertão de Carnaíba reencontram até com o fantasma de Lampião. Os que atentam para a coragem da avó alí homenageada revivem, entre estes, outros sentimentos dos seu laços de família.
Para os avós, netos são fonte de renovação e até da capacidade de amar. Para os netos, avós são a possibilidade de uma parceria amorosa recheada de afeto.
Netos são a sobremesa da vida
Por Christina Mattos
Não sei de quem é essa frase. Não posso dar o crédito. Poderia ser atribuída a qualquer autor famoso, mas prefiro imaginar que tenha sido construída por apenas uma simples avó, ou, melhor dizendo, por uma sábia avó. Sim, porque os netos chegam, exatamente, na idade madura – a idade da sabedoria.
O taoísmo faz um contraponto interessante e a nosso favor entre a juventude e a velhice. Segundo essa doutrina filosófica, na idade da busca do conhecimento(juventude) a cada dia se adiciona alguma coisa, já na idade da sabedoria(velhice), a cada dia se diminui uma coisa.

Modernamente falando, quando o menos é mais. Menos urgências, menos pressa, menos angústias, menos ambições, menos complicações e mais simplicidade. Sim, quando fazemos o caminho do menos, descobrimos o essencial: a felicidade e a alegria moram nas coisas simples. Seja “no orvalho beijando a flor”, seja em ver “o galo campina que, quando canta, muda de cor”, seja nas coisas que “pra mode vê o cristão tem que andar a pé”, na voz do grande Luis Gonzaga ou seja, acrescento, na felicidade estampada no olhar de um neto.
Estava eu assistindo a uma reportagem na TV sobre o empréstimo consignado, quando fui surpreendida por uma entrevistada. Diferentemente de todos os outros, que apresentavam uma fisionomia crispada, preocupada, angustiada, ela respondia às perguntas do repórter com um sorriso nos lábios. Estava fazendo um empréstimo consignado para comprar um presente para o neto. A felicidade da avó era tão genuína que conseguiu me levar às lágrimas. Ela prelibava o momento mágico – o transbordamento da alegria da criaturinha ao receber o presente, e, principalmente, aquele olhar, misto de agradecimento e felicidade, que lhe seria endereçado. Bendito empréstimo consignado!
Parafraseando Proust, o velho é uma criança que viveu demais. O encontro de avós e netos é um encontro de infâncias. Um encontro de iguais. Um encontro de cúmplices na irresponsabilidade.
Avós não são educadores – são anarquistas.
Avós não ralham – (so)riem.
Avós não orientam – apenas brincam.
Avós não mandam – mas obedecem com o maior prazer
O mundo, diz Fernando Pessoa, através de Alberto Caeiro, não foi feito para ser pensado, mas para ser visto e se estar de acordo. Os netos também, dizem os avós. Eles são o sentido e o sabor: a sobremesa da vida.
Turma do Funil – Variações na Longevidade
Liliane Vieira Longman
A nossa história começa alguns anos atrás. A minha primeira neta Luiza, com seus 3 anos, vivia no mundo da fantasia e brincadeiras da sua idade. Eu estava encantada de ser avó e começava a descobrir vocação para palhaço ou animadora de festas, apesar de alguns adultos acharem que sofria perturbações de comportamentos e ideias.
Confesso que, ao lado das crianças, sou um pouco de cada coisa, menos ser normal. Fernando Pessoa escreveu: “Tudo menos ter razão”. Se ele fosse uma pessoa normal diria: tudo menos não ter razão.
Minha maior crença é que nós, avós, estamos destinados a ser crianças e ainda mais, que podemos dar uma infância longeva, principalmente para os que não acreditaram em ser eternamente crianças, como diz a melodia.

Assim, os primos-primos sobrinhos do lado materno e paterno de Luiza, em número pequeno em idade e quantidade, saíamos todas sextas-feiras para passeios e brincadeiras pela cidade do Recife. Já no carro imaginávamos bruxas no céu com catota preta, princesas no Palácio Campos das Princesas, bruxos reais no museu do Mamulengo… De repente, estava nascendo a nossa turminha: Turma do Funil, inspirada na marchinha de Carnaval. Gabriela logo fez uma parodia que cantamos ainda hoje.
Todo nascimento é mágico porque nunca sabemos adivinhar o caminho a seguir. Todo mês de julho fazemos uma espécie de acampamento, com os primos com mais de 5 anos de idade. Temos um ritual na saída com nosso grito de guerra comandado por Léo (hoje estudando medicina), escolha de padrinhos e madrinhas dos novatos que chegam, batizado com funil derramando água na cabeça e o juramento seguido das palavras mágicas e obrigatórias: “por favor”, “desculpe” e “obrigada”.
Organizamos juntos as brincadeiras, mas como todo grupo, precisamos das regras para seguir e, principalmente, para transgredir. É assim que nos tornamos únicos.
Hoje somos mais de 34 primos-primos que fraternalmente recebem os que vão chegando. Cada um se reconhece nos gestos, nos sorrisos e nas formas de imaginar e brincar. Nossas memórias são narradas por mim, em um pequeno livrinho caseiro, ilustrado com as fotos dos melhores momentos. O mais, é o compromisso com a beleza das brincadeiras, das estórias obrigatórias, das músicas, dos jogos inúteis e da força e da alegria de estarmos juntos.
Será sempre um lugar de comunhão de afetos, de aprender e desaprender. Alguns já deixaram saudades, outros já adultos, ainda participam com alguns avós, tias e tios que se vocacionaram também a ser crianças.
A única promessa sem prazo de validade é ser uma avó que se presta a brincar e ser um brinquedo inútil, sem nenhuma utilidade pedagógica.